10 de agosto de 2010

Antes do Apocalipse - Lori Handeland

Antes do Apocalipse
Edição 909
Série: Bianca
Autora: Lori Handeland

Editora: Romances Nova Cultural
Assunto: Literatura Estrangeira / Romances / Banca
Série: Apocalipse - Vol. 1
Lançamento:  20/4/2010


- Sinopse:


1º livro da série "Apocalipse"

A Batalha Final

Elizabeth Phoenix sempre teve um dom especial, mas nunca soube exatamente como lidar com ele. Após a morte da mãe, sua vida muda completamente. Ela passa a ter sonhos aterradores com as criaturas mais pavorosas do que tudo que ela já viu na vida real. Qual será o significado dessas visões? E o que elas terão a ver com seu ex-namorado, Jimmy Sanducci?

Jimmy alerta Liz para a batalha sobrenatural que acontece desde o início dos tempos, na qual pessoas inocentes são perseguidas por seres malignos disfarçados de humanos. Somente alguns têm a capacidade de combater o mal, e ele acredita que Liz seja uma dessas pessoas. Agora, com todos os seus sentidos aguçados, novos sentimentos despertam dentro dela, sentimentos que reacendem sua antiga e perigosa atração por Jimmy.

Contudo, ele tem um segredo que a afetará profundamente, e que poderá colocar em perigo toda a raça humana...
________

- Leia um Trecho Interessante:

Capítulo I

No dia em que minha vida antiga acabou, a primavera estava no ar. As árvores germinavam, as flores desabrochavam, a grama estava fresca... Tudo trazia esperança. Eu deveria saber que algo muito importante estava por vir.
Sempre fui paranormal, o que nunca me deixou muito feliz.
Mas o que quer que eu considerasse normal ficara para trás naquela manhã de maio, e nunca mais tinha voltado.
Tinha ido trabalhar como de costume. Era garçonete no primeiro turno do Murphy, um bar de policiais na área leste de Milwaukee. Vinte e cinco anos, e ainda uma garçonete. Isso me preocuparia mais se eu já não tivesse tentado ser uma policial e desistido.
Policiais e paranormais não combinavam.
Não que eu fizesse alarde do meu dom. Entretanto, era impossível esconder o que eu via, até porque, por muitas vezes, esconder o que eu sabia se tornava um crime ainda maior do que o crime em si.
Claro que tentei conciliar as coisas. Tentava inventar desculpas para explicar a origem das informações que obtinha. Mas nem sempre me vinha à mente alguma história que fizesse sentido.
Os policiais que trabalhavam comigo não confiavam em mim porque não me entendiam. Evitavam-me o máximo que podiam, procurando por mim apenas quando precisavam de minha ajuda.
Quando me perguntavam, não me restava outra saída senão responder. Na maior parte das vezes eu conseguia ajudar, mas, eventualmente, meus pressentimentos eram um total desastre.
A situação foi ficando difícil. Ao final, minha única opção foi deixar a corporação. Tornar-me uma garçonete num bar para policiais era a solução perfeita.
Naquela manhã, tinha fregueses batendo à porta antes das onze. Abri as portas e as janelas, e contemplei os galhos da árvore em frente dançando ao vento e formando desenhos de variados
tipos sobre a calçada. Senti a brisa da primavera no rosto, e, de súbito, um arrepio percorreu todo o meu corpo, apesar do calor que fazia. Fui possuída por uma necessidade urgente de fugir.
A ajudante para o almoço ainda não tinha chegado, mas não importava. Todos ali eram fregueses habituais.
— Kenny — chamei.
O outro atendente me olhou com cara de poucos amigos, mas eu já me encontrava à porta do bar.
— Tenho uma emergência. Volto assim que puder. A outra garçonete chega em dez minutos.
A cara feia deu lugar a uma expressão confusa.
— Que emergência? Você nem mesmo recebeu um telefonema!
Achei melhor nem responder.
Usei o celular assim que entrei no carro, mas Ruth não atendeu, o que não foi surpresa alguma. Às vezes eu imaginava como ela conseguia dar conta de tanta responsabilidade.
Ruth era uma senhora negra que dirigia um lar para crianças no lado sul de Milwaukee, em um bairro cercado de casas bonitas, com belos jardins e moradores loiros de olhos azuis:
a maioria descendente de europeus e alemães.
Nos velhos tempos, ela era a única negra em toda a vizinhança, mas não se importava. Surpreendentemente, os outros também não. Mesmo aqueles que atravessariam a rua para evitar
uma pessoa de cor, viam Ruth como uma tia amorosa e sorridente, amiga de todos.
Vinte minutos depois, estacionei em frente ao único sobrado de dois andares do quarteirão. Tudo estava calmo. Por que não estaria? Àquela hora do dia, as crianças costumavam estar na escola. Talvez Ruth nem estivesse em casa. No entanto, aprendi, ao longo dos anos, que sempre que sentisse
urgência em vê-la era porque havia uma boa razão.

Desci do carro e caminhei em direção à porta. Ruth pertencia àquela época em que os pais educavam os filhos com amor e pulso de ferro. Uma vez que decidisse cuidar de você, não o largaria jamais.
Foi a única mãe que conheci. Quando alcancei a varanda, vi que a porta estava semiaberta.
Automaticamente, levei a mão à cintura, mas já havia meses não carregava minha arma. Senti falta dela como nunca tinha sentido.
Embora já soubesse o que encontraria, abri a porta devagar e a chamei pelo nome:
— Ruth?
Um forte cheiro de sangue me impediu de chamar mais. Encontrei-a na cozinha, caída numa poça de sangue, iluminada pela luz do sol que entrava pela janela. Ajoelhei para checar-lhe o pulso. Não restava muito.
— Liz — sussurrou, abrindo os olhos. — Sabia que viria.
— Não tente falar. Vou chamar...
— Não — ela interrompeu. Fechou os olhos e, por um instante, achei que tivesse partido.
O que eu faria se a perdesse? Era a única pessoa no mundo que me amava de verdade.
— Ruth!
— Shhh. — Pôs a mão em meu joelho, deixando uma mancha de sangue. Estranho, mas a mão parecia ter sido mordida, dilacerada.
— Esperei por você, mas não veio.
Eu me encolhi, sentindo-me culpada. Estivera trabalhando muito naqueles dias.
— Virei mais vezes, prometo.
Ela me olhou:
— Quando eu me for, ficará tudo nas suas mãos.
— Ruth, não...
— A batalha final — a voz dela começou a falhar —, começa agora.
Apertou minha mão com uma força inesperada para uma senhora à beira da morte. Então meu corpo estremeceu e tudo ao meu redor ficou escuro.

Quando acordei do coma, o clima havia mudado. Lembrei-me claramente de ter ido à casa de Ruth num bonito dia de primavera, mas das janelas do hospital eu só via neve. Senti pânico a princípio, imaginando que pudesse ter perdido um ano de minha vida.
Percebi um movimento no quarto, ao mesmo tempo que algo me tocou o braço. Virei a cabeça para conferir, e um medo terrível se apoderou de mim. Fechei os olhos, mas o que vi era ainda pior, então preferi abri-los de novo.
Mesmo sendo paranormal, nunca havia tido semelhante visão.
Não. Não podia ser. Vi monstros, com garras e dentes horripilantes.
Sangue e morte no ar, como na casa de Ruth. Aquilo não poderia ter acontecido, a não ser que fosse um pesadelo. Que tipo de medicamento estariam me dando?
Tentei me lembrar do que tinha acontecido naquele dia, depois que atravessara a porta e vira Ruth ensanguentada no chão. A tentativa me deixou tão cansada que acabei voltando ao conforto e segurança da escuridão.
Engraçado, nunca mais tinha tido a necessidade de procurar por um lugar seguro desde o dia em que Ruth me acolhera.
Quando acordei novamente, Laurell e Hardy estavam sentados ao lado da cama. Os nomes deles eram, na verdade, Hammond e Landsdown, mas um era alto e magro, com o olhar meio morto, e o outro, baixo e gordo, tinha a expressão mais apagada ainda. Detetives da divisão de homicídios, eram mil vezes mais espertos do que pareciam.
— O que vocês querem? — Procurei pelo controle da cama para levantar a cabeça. Se tivesse me acontecido algo sério, os médicos não teriam permitido que eles entrassem ali.
Assim que me acomodei, meu cérebro decidiu funcionar, e todos os detalhes daquele dia de repente se tornaram nítidos.
Ou quase todos.
— Quem bateu em mim?
Os olhos de Hammond se arregalaram:
— Bateu em você? Quando?
— Fui à casa de Ruth. A porta estava aberta... — A presença dos dois homens me levou a concluir:
— Ela está morta?
— Sim — respondeu Landsdown.
Senti vontade de chorar, mas não sabia como. Pessoas como eu perdem essa capacidade muito cedo na vida.
— O que você viu? — perguntou Hammond.
Respirei fundo, fechei os olhos, e de novo a cenas dos monstros voltou à minha mente. Que diabo estavam colocando no meu soro?
Balancei a cabeça e abri os olhos.
— Ruth estava no chão. Fui até ela para conferir o pulso. 
— Ainda estava viva? — Landsdown indagou.
— Sim.
— Ela falou com você? — Foi a vez de Hammond.
— Disse que sabia que eu iria.
— Como ela poderia saber?
Hesitei. Como ela saberia? Eu fora até lá num impulso, movida por uma necessidade urgente de vê-la.
— Não faço a menor ideia — respondi, então franzi a testa, preocupada. — E as crianças?
Ruth sempre tinha o número máximo de crianças que comportava a casa. Rezei para que nenhuma tivesse nos encontrado na cozinha.
— Estão bem — assegurou Landsdown. — Todas estavam na escola e não viram nada.
— Que bom. — Soltei a respiração que vinha segurando.
— Onde estão agora?
— De volta ao sistema.
Suspirei. Não havia nada que eu pudesse fazer. Mesmo que fosse capaz de cuidar de oito crianças, o Estado nunca permitiria.
— Acha que alguém golpeou você? — perguntou Hammond.
— Sim. Ruth segurou minha mão e, em seguida, eu apaguei. Tudo o que sei é que acordei aqui. 
Os dois se entreolharam.
— O que foi?
— De acordo com os médicos, não tinha nenhum trauma na cabeça ou ferimento a bala ou a faca. Nenhuma droga em sua circulação.
— Mas... — Levantei o braço, cheio de tubos ligados aos sensores. — Por quanto tempo dormi?
— Quatro dias.
Olhei para a janela e vi que a neve ainda caía.
— Alguém me golpeou — insisti.
— Talvez você tenha desmaiado.
— Se ninguém me bateu, por que fiquei em coma por quatro dias?
Hammond deu de ombros.
— Ninguém sabe.
Os detetives se entreolharam Eu não precisaria ser paranormal para perceber que queriam me perguntar alguma coisa. Landsdown limpou a garganta. 
— Precisamos de um favor.
— Qual?
Sem qualquer aviso, Hammond jogou o boné em meu colo.
No instante em que o peguei, disse:
— Jimmy.
— Jesus! — exclamou Landsdown. — Como você consegue? Eu gostaria de saber. Sempre achara que, se soubesse, conseguiria controlar o que acontecia comigo. Se as visões não desaparecessem,
pelo menos eu aprenderia a segurar o impulso e não falar em voz alta tudo o que via. Era aí que os problemas sempre surgiam. Precisava guardar as informações apenas para mim.
— Consegue ver onde ele está?
Meu coração se acelerou. Eles eram da homicídios, mas, se queriam saber onde Jimmy se encontrava, então ele não estava morto.
Ou assim eu desejava. Podia tê-lo chutado para fora da minha cama anos antes, mas tivera trabalho para expulsá-lo de meu coração.
— Não — respondi, por fim, devolvendo o boné a Landsdown.
— O que querem com ele?
 Entreolharam-se novamente. Eram quase como um casalque se entendia mesmo sem trocar uma só palavra.
— Conhece Sanducci? — A voz de Landsdown me trouxe de volta ao hospital.
— Sabe muito bem que sim.
Eles eram irritantes, mas minuciosos. Sabiam de meu relacionamento com Jimmy. Todos na corporação sabiam.
— Quando foi a última vez em que o viu?
Eu não me preocupava em ser educada quando o assunto envolvia Jimmy Sanducci.
— Quando eu lhe disse para não prender o rabo na porta enquanto saía de minha vida. 
Hammond tossiu, tentando esconder o riso.
— Tinha uma relação íntima com o sr. Sanducci?
— Não.
O que Jimmy e eu tínhamos não podia nem de longe ser chamado de relação. Ele não entendia o significado da palavra.
— Por que estão procurando por ele?
— Por que você acha?
A princípio não entendi, até que meu coração disparou. Olhei para Hammond, incrédula.
— Jimmy não machucaria ninguém.
— Ele não era exatamente gentil quando criança.
Olhei-os, desconfiada. Informações sobre menores costumavam sersigilosas. Não poderiam saber a respeito de Jimmy, a não ser que... Interrompi o pensamento antes que meu rosto o revelasse, mas acho que não fui rápida o suficiente.
— Sabe que Sanducci é capaz de matar — afirmou Landsdown, com um olhar triunfante.
Sim, eu sabia, mas nunca confirmaria tal coisa.
— Ele nunca machucaria Ruth.
Hammond não parecia convencido.
— Por que estão tão certos disso?
— A arma do crime.
— Arma? — Aquilo não parecia ser coisa de Jimmy.
— Força de expressão — comentou Hammond. — Na verdade era uma faca.
Agora, sim, parecia. Ele sempre havia tido loucura por facas e todo o tipo de objeto pontiagudo.
— Fugiu da cena do crime.
— Precisam de mais do que isso para que ele seja suspeito.
— Impressões digitais na faca, e em todo o local.
— Muito estúpido para Sanducci.
— Por que um fotógrafo não deixaria evidências?
Jimmy era um mágico nos retratos, um artista de proporções épicas. Todos que fossem importantes queriam ser fotografados por ele.
— Qualquer imbecil sabe que não se deve tocar em nada.
— Talvez ele estivesse fora de si. Talvez tivesse acabado de descobrir que Ruth deixaria tudo para você.
Franzi a testa.
— Mas Ruth não possuía nada.
— De acordo com os vizinhos, eles estavam discutindo aos gritos. Então Ruth morre e Jimmy está desaparecido.
Jimmy nunca gritava, a não ser comigo.
— Sabe onde ele está? — pressionou Landsdown.
— Dê o boné a ela — ordenou Hammond.
Levantei a mão, impedindo-o.
— Não é assim que funciona. Não podem me perguntar o que querem e esperar por uma resposta a qualquer momento. Não sou uma bola de cristal.
— E o que você é?
Embora a voz de Landsdown soasse neutra, o rosto demonstrava o que pensava a meu respeito: que eu era uma aberração... ou uma golpista.
— Nunca tive certeza sobre mim mesma. Tenho alguns flashes quando toco pessoas ou objetos, mas não posso controlá-los.
— Não acontece sempre?
— Não.
Landsdown soltou um suspiro.
— Vamos embora.
Não me preocupei em me despedir. Apenas ouvi a porta se fechar por trás deles.
Segundos depois, ouvi outra porta se abrir.
— Por que não lhes contou?
A voz veio da escuridão, caindo sobre mim como uma chuva de verão e despertando lembranças que eu levara anos para esquecer.
— Sabe que eu nunca contaria, Jimmy. De outra forma, não teria me procurado.
Eu podia sentir o cheiro dele a distância. Jimmy sempre cheirava como se tivesse acabado de sair do banho.
Mordi o lábio para não dizer nada de que fosse me arrepender.
Eu o odiava, mas ainda o amava. Eram sentimentos contraditórios, como um dom e uma maldição.
Ele se moveu na sombra, e procurei o interruptor para acender a luz.
— Não — Jimmy murmurou.
Sentei-me à beira da cama. Não poderia ficar hospitalizada por muito mais tempo. Sentia-me perfeitamente bem. Os tubos me impediam de levantar, então os arranquei. O soro intravenoso doeu muito. Assim que fiquei em pé, acendi a luz. Nunca fora muito boa para seguir ordens, em especial se
vindas dele.
O cômodo se iluminou, revelando um olho roxo.
— Ah, Jimmy. — Num impulso, estendi a mão para tocá-lo. Ele teve o bom-senso de dar um passo para trás.
— Se deseja voltar ao ponto onde paramos quando me mandou embora, meu anjo, por mim tudo bem. Mas neste exato momento estou mais preocupado em cuidar de mim mesmo.
— Não me chame de “meu anjo” — Fechei os punhos. — Não me chame assim nunca mais.
O toque de dor em minha voz me surpreendeu. Pensei que já tivesse superado a traição, mas percebi que estava enganada.
Tudo nele era negro: o cabelo, as roupas, o coração.
A pele era bronzeada mesmo no inverno. Talvez alguma herança genética. Mas Jimmy não tinha qualquer pista sobre sua descendência, pois, assim como eu, fora abandonado.
Apesar do olho roxo, ou talvez por esse motivo, ainda era o mesmo. Sempre tinha sido um colírio para os olhos, o que o ajudara a sobreviver nas ruas por tanto tempo. Fizera coisas que eu não sabia, nem queria ficar sabendo.
Eu também tinha feito coisas. Até que se sinta fome a ponto  de brigar com os ratos por restos de lixo, ninguém verdadeiramente
sabe do que é capaz. Jimmy e eu sabíamos.
— Foi você? — perguntei, cautelosa.
.— Vá se danar! — Ele me olhou, furioso
— Não de novo.
— Por que vim até aqui? — Jimmy foi em direção à porta, mas bloqueei a passagem.
— Por quê? — repeti.
— Lizzy...
Ele era o único que me chamava daquela forma. Para todos os outros eu era Elizabeth, ou Liz.
— Foi você quem a matou?
Ele teve vontade de me estrangular. Eu podia ver isso em seus olhos. Mas, embora tivesse feito coisas das quais se arrependia até hoje, Jimmy não seria capaz de bater em uma mulher. Muito menos em mim.
Até porque eu revidaria. Ele tinha aprendido a lição da pior forma possível quando tínhamos doze anos.
Sorri ao me lembrar da primeira vez em que havíamos nos encontrado. Ele morava com Ruth já havia dois anos quando eu tinha chegado de outro orfanato que não pudera me manter. Eu era uma menina de doze anos bastante nervosa e agitada. Mais alta que as outras de minha idade, usava roupas largas e o cabelo comprido cobrindo o rosto. Principalmente por ser diferente, por meus talentos especiais, muitas vezes tinha vontade de desaparecer por completo.
— O que é tão engraçado?
— Estava me lembrando da primeira vez que bati em você.
— Foi tão divertido assim?
— Hilário.
Jimmy era o mandachuva na casa de Ruth, mas tivera de se mudar para o quarto dos outros meninos para que eu dormisse no dele. Ele não tinha ficado feliz com a mudança, então colocara uma cobra de jardim em minha cama. Eu havia batizado a cobra de James, providenciara uma gaiola para ela e quebrara os dentes de Jimmy no dia seguinte.
Ele nunca mais tinha me provocado.
Até os dezessete anos.
Essa era outra lembrança que eu não pretendia reviver. Não agora que estávamos tão próximos, e eu quase nua, vestida apenas com a leve camisola do hospital.
— Quem bateu em você? — perguntei.
— Importa-se?
— Se quer minha ajuda, precisa me contar o que aconteceu.
— Quem disse que eu quero a sua ajuda?
— Por qual outro motivo teria vindo até aqui?
Ele desviou o olhar.
— Talvez eu quisesse ver você.
Lembrei-me de ter acordado durante o coma com a impressão de que não estava sozinha; quando tivera aquela estranha visão de monstros.
— Há quanto tempo está aqui?
— Não muito. Quando aparou os cabelos?
Pisquei ante a súbita mudança de assunto. O que meu cabelo tinha a ver com todo o resto?
— Anos atrás.
— Seu cabelo era lindo.
Tudo parecia fora de sintonia: Jimmy em meu quarto de hospital, falando sobre meu cabelo, enquanto era procurado pela polícia pelo assassinato de Ruth. Eu havia tido sonhos como aquele antes, tão cheio de absurdos que deveriam significar alguma coisa, embora quase nunca pudesse descobrir o quê.
Lembrei-me de Ruth e fiquei profundamente triste. Não conseguia aceitar a perda dela.
— Ter cabelos muito compridos trás alguns problemas quando se é policial — respondi, continuando o assunto ridículo para aquele momento. Talvez ambos quiséssemos falar sobre coisas triviais para evitar o que nos doía.
— Não é mais uma policial.
Como se eu precisasse ser lembrada.
— O que aconteceu com Ruth?
— De acordo com seus amigos, eu a matei. — Olhou-me fixamente. — E, pelo visto, você concorda com eles.
— Eu não faria isso.
— Estou tocado.
— Sou a única amiga que tem no momento, Jimmy. Não estrague tudo. Conte-me o que aconteceu. Por que você e Ruth discutiram? Quem a matou? E como a mataram se você estava lá? Jimmy brigaria por Ruth, morreria por ela. Então por que, afinal, era ele quem estava ali e não ela?
Ele desviou o olhar com uma expressão de tristeza.
— Há coisas acontecendo que você não entende, Lizzy.
Sempre tinha havido. Apesar das visões, eu sempre fora um pouco lenta no que se referia às pessoas, chegando a parecer estúpida quando se tratava de Jimmy. Acreditara nele e em nós, até que o vira com outra mulher horas após ele ter estado comigo.
Àquela época, eu acreditava que o que existia entre nós era amor. Então havia descoberto que estava errada.
— Não confio em você.
— Acredita que eu mataria alguém?
— Sempre foi conhecido por usar objetos pontiagudos naqueles que o irritavam.
Ele franziu a testa.
— Não a espetei até hoje.
— Não, mas tenho certeza de que já sonhou com isso.
Jimmy esboçou um sorriso.
— Quando sonho com você, não penso em facas, mas sim em correntes, cordas, e talvez um pouco de chantilly...
— Engraçado, quando sonho com você sempre sonho com facas.
O sorriso dele desapareceu.
— Os policiais disseram que Ruth morreu por ferimento a faca?— Pensei que tivesse ouvido.
— Ouvi apenas alguns trechos da conversa.
— Disseram que encontraram uma faca, e que, pela descrição, ela é sua. As impressões combinam, e ainda há a discussão. Com tudo isso, você encabeça a lista de suspeitos.
— Espero que não tenha lhes contado sobre minha fascinação por objetos afiados na infância.
— Eles já sabem.
Jimmy murmurou uma série de palavrões que teria ofendido os ouvidos da maioria das pessoas, mas não os meus.
— Talvez devesse se entregar e...
— Não — ele respondeu. Nunca superara o tempo que havia passado na prisão quando criança. E eu não podia culpá-lo por isso.
— Se não foi você...
Jimmy parou e desviou o olhar, como se ouvisse algo a distância. E, antes mesmo que eu pudesse perceber, já tinha cruzado o cômodo e saído porta afora.
Fui atrás dele, abrindo a porta segundos após ele tê-la fechado.
Mas quando a abri, o corredor se encontrava deserto.
Friedenberg era um paraíso yuppie. Localizada ao norte de Milwaukee, a cidade um dia tinha sido uma antiga comunidade alemã, motivo pelo qual havia tantas igrejas luteranas construídas com pedra.
Durante séculos não existia nada pelos arredores além de gado. No entanto, com a modernidade, a cidade fora se tornando mais perigosa, e aqueles que tinham condições se mudaram mais para o Norte.
O táxi parou em frente à minha casa: um sobrado de dois andares que eu havia comprado ao deixar a polícia. Quisera viver o mais longe possível de minha antiga vida, mas perto o suficiente para continuar visitando Ruth.
Alugara o primeiro andar para um pequeno estabelecimento que vendia todo tipo de bugigangas. Eu morava no segundo andar do sobrado. O barulho da loja incomodava das dez da manhã às cinco da tarde, mas o restante do tempo, que era o que eu passava em casa, o lugar era tranquilo e silencioso.

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- Fonte: http://www.romancesnovacultural.com.br/site1/oquesao_x.asp?codlivros=1124

6 comentários:

  1. Oiii

    Waaa adorei! Eu quero!
    Adorei o diagolo da Liz com o Jimmy! *o*

    "— Sempre foi conhecido por usar objetos pontiagudos naqueles que o irritavam.
    Ele franziu a testa.
    — Não a espetei até hoje.
    — Não, mas tenho certeza de que já sonhou com isso.
    Jimmy esboçou um sorriso.
    — Quando sonho com você, não penso em facas, mas sim em correntes, cordas, e talvez um pouco de chantilly..."
    Perfeito! hahaha

    Bjus =***

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  2. "— Quando sonho com você, não penso em facas, mas sim em correntes, cordas, e talvez um pouco de chantilly..."


    Nossa, gamei.
    quero ler. ^^


    http://librosdiamore.blogspot.com/

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  3. ESSE EU JA LI MAS GOSTARIA DE SABER SE TEM A CONTINUAÇÃO, POIS FIQUEI MUIIIIIITO CURIOSA PARA SABER SE JIMMY VAI OU NÃO VOLTAR PARA O LADO DO BEM E AJUDAR LIZ. BJS

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